quinta-feira, 28 de abril de 2011

"Djavaneando" na linguagem

Djavan lança seu novo álbum e diz que todo compositor precisa dedicar à letra a mesma carpintaria que destina à melodia

Guilherme Bryan

Depois de 34 anos de carreira e 19 discos, o cantor e compositor Djavan Caetano Viana acaba de lançar o álbum "Ária", em que interpreta clássicos da música brasileira e norte-americana, como Sabes Mentir, de Othon Russo, Palco, de Gilberto Gil, e Fly Me to the Moon, de Bart Howard.

Para a crítica, suas letras abstratas e metafóricas cavaram um lugar próprio na MPB. Não lembram a entoação infantil das canções populares das primeiras décadas do século 20, nem as narrativas da reação malandra às condições sociais desiguais dos anos 30, tampouco as imagens justapostas de cocas e cocares do texto tropicalista. Sua obra marcaria uma evolução da letra de canções brasileiras, em que a aparente incoerência figurativa dificulta o entendimento imediato seja do tempo, do tema, da própria frase. Sua abstração textual tem concretude, no entanto. E é alvo de imitadores e estudos os mais diversos.

Djavan nasceu em Maceió (AL), em 27 de janeiro de 1949, e é um dos mais respeitados nomes da música brasileira. Admite que sua música não é fácil de letrar. Por isso, prefere ele mesmo criar os versos de suas canções. Diz que só consegue compor do jeito que compõe por dedicar à letra a mesma carpintaria que dispõe à melodia. E por gostar de brincar com o idioma, que é uma fonte inesgotável de variação de palavras para o mesmo significado. Busca, sempre, criar letra e música como um só verbo. Desejo e sina.

Quais as particularidades de interpretar o que os outros escreveram no álbum "Ária"?
Esse disco foi uma surpresa para mim. Em primeiro lugar, porque achava que ia ser mole fazer, porque não teria de criar doze canções novas, o que seria um trabalho gigantesco, pois também toco, canto, arranjo e produzo. Escolhi essa forma de fazer para poder ser íntegro ao máximo e mostrar a minha ideia musical sem interferências. Mas esse disco foi uma loucura, porque tive de ouvir tudo de novo, de Heitor Villa-Lobos a compositores mais recentes. Passei um ano pesquisando, porque não tinha certeza de nada. Tive grande insegurança. Enfim, esse disco tem doze canções que não são as melhores da minha vida, mas canções com as quais pude me relacionar melhor. Ao mesmo tempo, gosto de correr certo risco e, para aumentar o grau de dificuldade, trouxe uma formação instrumental improvável. Nunca imaginei que fosse ter uma banda sem bateria, mas com baixo acústico, percussão, guitarra e violão. Foi de um ineditismo incrível.

Acredita que tenha criado uma dicção própria em suas canções?
Sou um artista que se descobriu com o tempo, que tem um trabalho original, que se consegue identificar ao longe e em qualquer lugar. Quer dizer, o meu modo de cantar, compor, tocar, escrever e fazer arranjos é muito pessoal. Tenho um gosto pela musicalidade das palavras, que são seres vivos, digamos assim. Não são estáticas como as notas musicais. A palavra pode ter duas ou três conotações de acordo com a frase. E assim como faço experimentalismos musicais, também faço os linguísticos, algo que me move a vislumbrar outros caminhos.

Djavan lança novo álbum e diz que todo compositor precisa dedicar à letra a mesma carpintaria que destina à melodia


Você costuma, por exemplo, mudar as funções gramaticais das palavras em suas letras.
Em Oceano, o mar aparece para simbolizar a profundidade de um sentimento e eu o utilizei não como substantivo, mas como verbo: "Você deságua em mim e eu oceano". Quando descobri essa forma, fiquei muito feliz, porque é um achado maravilhoso.

Como estabelece a relação entre letra e música?
Já fiz de várias formas. Letra e música ao mesmo tempo. Primeiro a letra e depois a música, mas não chego a ter dez canções nesse formato. E primeiro a música e depois a letra, que é como eu passei a fazer de vinte anos para cá, o que me proporciona ter controle sobre as coisas, de modo a ficar mais à vontade para experimentar. A minha música não é fácil de letrar. Todos os letristas que passaram por ela, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Cacaso, Aldir Blanc, entre outros, fazem a ressalva de que é uma música muito subdividida e, por isso, requer uma adaptação para ser letrada. Mas é evidente que tenho um traquejo, porque faço isso há muito tempo.

Quais cuidados você toma com relação ao uso da língua ao compor?
É óbvio que já cometi erros ao longo da carreira, como todos os outros compositores cometeram, e já passei pela saia justa dos pronomes, do porquê, junto ou separado. Ao fazer uma letra, não é possível deixar de observar a sonoridade e a adequação de cada nota e de cada sílaba. Há vezes em que cometi erros, como na música Azedo e Amargo, em que coloquei "Ela é chegada em azedo e amargo", quando o formal seria "Ela é chegada a azedo e amargo". Com a melodia que eu tinha, não ia ficar bom. Mas é evidente que todo mundo quer escrever de maneira corretíssima, pois depois será julgado publicamente, e você vai aprendendo a escrever melhor ao longo do tempo. Minhas letras são muito usadas em teses de faculdades de todo o Brasil.

Suas letras por vezes parecem reunir imagens quase soltas, mas que, quando se encontram, têm forte significado. Como cria esse efeito de sentido?
Isso existe, mas não é o objetivo da minha escrita. Encontra-se em uma música ou em outra. Não tenho compromisso com algum formato específico de escrever. Quero me divertir e vislumbrar ritmo, cor, textura, beleza e conteúdo numa escrita. Do mesmo modo que experimento o tempo todo na música, experimento também na forma de escrever e procuro diversificá-la. Sinceramente, também acho que a mesma evolução que consigo na música consigo na escrita. Gosto muito das coisas que escrevo.

Seria arrogante dizer que criou uma escola e um estilo de composição?
O Brasil é um país cheio de matrizes - Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Jobim, Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga, Ivan Lins e João Bosco com Aldir Blanc, entre outros. São músicos que têm aquela pegada que é só deles. Eu suponho que faço parte desse grupo (risos). A crítica descobriu antes de mim que eu tinha um trabalho original e pessoal. É uma coisa natural, porque, quem gosta de Djavan só vai poder buscá-lo em mim. E tem gente que me tem como referência, caso do Jorge Vercilo. Há até na Alemanha uma escola que ensina só a minha música.

"Não tenho compromisso  com algum formato específico de escrever. Quero me divertir e vislumbrar ritmo, cor, textura, beleza e conteúdo numa escrita"

Quais artistas mais te influenciaram no modo de compor?
As minhas maiores influências são Luiz Gonzaga e Beatles. Luiz Gonzaga é um melodista fantástico, um letrista maravilhoso e um senhor cantor. E os Beatles me ensinaram, no momento em que estava embevecido com a complexidade da harmonização da Bossa Nova, a usar o acorde perfeito de maneira adulta e classuda. Enquanto a Bossa Nova trabalhava só com dissonância, que, por si só, traz no bojo uma complexidade e aura de sofisticação, os Beatles demonstraram que o acorde perfeito não tende apenas a dar uma atmosfera pobre às coisas.

A temática da natureza é frequente em suas canções. De onde vem o interesse?
Há quem diga que o amor é o tema central da minha composição, mas eu também utilizo a minha paixão pela natureza, que é mais instintiva, porque nasci numa cidade em que a água é o ponto de referência. Maceió é cercada por lagos, lagoas, mares e rios. Ao mesmo tempo, antes da água, a minha grande paixão é a mata. Eu tenho uma propriedade em Araras (na região serrana do Rio de Janeiro), que possui um pedaço de Mata Atlântica imenso. Se você me soltar ali às quatro horas da manhã, vou me sentir como se estivesse dentro de casa, pois sou apaixonado pela textura, construção, formato e coloração das folhas. E esse é um assunto inesgotável para canções, livros etc., que eu utilizo naturalmente.

O que mais atrai você no uso da língua portuguesa?
Eu amo trabalhar com a língua portuguesa e amo ter nascido nela, que é mágica e tem milhões de possibilidades. Ninguém, a rigor, conhece a língua 100%. Os catedráticos sempre reconheceram o fato de ela ser uma língua viva e que nos prega peças o tempo todo. Várias vezes tenho de recorrer ao dicionário para escrever uma palavra que nunca escrevi na vida, e olha que tenho muitos anos de carreira. Uma loucura. É uma língua de uma abrangência espetacular, que se aprende a cada dia. Estudei até o segundo ano científico (ensino médio) e depois saí à luta por trabalho. Mas o gosto pela língua sempre existiu, porque tenho a música como meta desde os 13 anos. Então, sempre tive um namoro com a língua. Às vezes há um sem-número de sinônimos que você pode usar para uma mesma conotação. Porém, cada maneira mais sutil tem o seu emprego definitivo. Tem muita gente que acha que basta usar um sinônimo que está dizendo a mesma coisa, mas não está. Por isso, é preciso ter atenção e sensibilidade para usar a língua portuguesa e saber que você só atinge a sua profundidade de acordo com o uso. Quanto mais se usa a língua, mais se aprende.

É possível dizer que há musicalidade no idioma?
Um verso meu que as pessoas às vezes citam quando querem determinar algo desconfortável numa letra é "Açaí, guardiã / Zum de besouro, um ímã / Branca é a tez da manhã". Eu acho esses versos maravilhosos, porque açaí é uma fruta do norte do país, que carrega nas costas as populações carentes ali existentes. É graças a ela que populações inteiras conseguem sobreviver. Por isso, eu a chamei de guardiã. Já quando você ouve o som de um besouro em algum lugar, tende a querer descobrir quem o está produzindo. Quer dizer, é um verso poético. O que tem é o seguinte: quem escreve poesia não tem nenhum dever, nem vontade de explicar, porque isso não se explica. Ou você gosta, entende e alcança ou não.

                  Admirável a dedicação de Djavan para compor música de qualidade ,contribuindo assim para a riqueza cultural do povo. Experimentem ouvir suas canções. São belas!!! Tocam a alma!!!

Nenhum comentário:

Postar um comentário